Carlos Alberto Santos
Viaje entre sonhos e poesias
Textos
O sobrevivente.

Foi em dezembro de 1961 que Laura viu Gerson pela primeira vez, no momento em que seus olhos se cruzaram ela teve a certeza que ele seria o homem da sua vida, foi amor à primeira vista.

O namoro não demorou para engrenar, o problema foi o pai dela que não aceitava Gerson e proibiu veementemente o namoro.

Naquela época era muito difícil para uma filha desobedecer ao pai, principalmente Laura que tinha um medo enorme dele, pois seu Benedito era uma figura autoritária, não dava margem para o diálogo, somente sua palavra é a que prevalecia.

Mas Laura não conseguia ficar longe de Gerson e passaram a se encontrar escondidos com a ajuda de Francisco seu irmão caçula, que se revelou um grande amigo.

Durante quatro meses tudo correu muito bem, até que foi surpreendida pelo seu pai, Gerson argumentou bastante tentando demonstrar suas boas intenções, mas seu Benedito rebatia todos os argumentos, até que ficou muito irritado e em um acesso de raiva falou que sua filha jamais se casaria com um negro.

Depois deste episódio Laura foi proibida de sair sozinha, era da escola para casa e por muitos dias não conseguiu se encontrar com Gerson. 

Seu Benedito fez uma marcação serrada, Laura só saia de casa na companhia de alguém.

Naquela época era inconcebível a desobediência dos filhos e o namoro só acontecia com o consentimento dos pais, eles impunham os limites, horário de visita etc., nunca era admitido ao casal permanecer sozinhos no mesmo ambiente.

Laura se revoltou e deixou de ser tão submissa, começou a responder, se impor, mas suas atitudes deixaram seu Benedito cada vez mais nervoso, falava que o Gerson estava acabando com a harmonia da casa, prejudicando a educação da filha.

Francisco comovido com a situação da irmã continuou a ajudá-los, entregava os bilhetes de Laura para Gerson e vise versa, virou o pombo correio do casal.

Os dois arquitetaram um plano, iriam ultrapassar os limites, pelo menos é que os outros pensariam, iriam fugir, assim seus pais os forçariam a casar, seria a única alternativa que seu Benedito teria para não manchar a honra da família.

No dia combinado, Francisco deixou a porta da sala aberta, para que Laura saísse rápido de casa sem fazer barulho.

Gerson a estava esperando na esquina, assim que Laura chegou foram direto para a estação de trem, embarcaram sem destino certo.

Os pais deram pela sua falta logo pela manhã, pois era sua obrigação preparar o café para eles.  Quando se levantaram e a mesa não estava posta, foram direto ao seu quarto e sobre a cama havia um bilhete explicando tudo.

Seu Benedito ficou furioso, esbravejou muito e disse a sua esposa que iria atrás dela e a traria de volta.

Dona Hilda, disse ao marido:

 - Benedito, não adianta ficar nervoso, agora é melhor aceitar a situação e casá-la com Gerson.
- Aquele safado conseguiu o que queria.
- Melhor não darmos alarde, o que a vizinhança vai pensar da nossa filha.
- Tudo bem não há nada que fazer.

No dia seguinte, à tarde, Laura e Gerson voltaram, ele foi falar com o seu Benedito, que o recebeu sob a mira de uma espingarda.

- Seu cabra safado, você vai se casar com a minha filha, ou eu lhe mato agora.
- Calma seu Benedito, nós não fizemos nada, somente passamos a noite no trem, quando chegamos à Rolândia, pegamos o trem de volta.
- Você espera que eu acredite nisso?
- Tudo bem, nos casaremos, podemos marcar a data?
- Sim, mas não pode ser dessa forma apressada, pois poderão pensar que ela está gravida.

Namoram durante oito meses, ficaram noivos e marcaram o casamento para o dia 12 de dezembro de 1962 quando completaram um ano de namoro.

Foi uma cerimônia simples, somente os amigos mais íntimos foram convidados.

A expressão sisuda do seu Benedito chamou a atenção de todos, era nítido que ele estava contrariado.

Após o casamento foram direto para a casa que alugaram, era uma casa muito simples de madeira, o piso era de vermelhão, um pó vermelho que aplicavam sobre o cimento, pois piso era artigo de luxo, o mais importante eles tinham, o amor que sentiam um pelo outro e juntos conseguiram superar todas as dificuldades.

No ano seguinte ao casamento, Laura ficou grávida e deu à luz a um menino, que recebeu o nome do pai, todos passaram chamá-lo de Junior.

Junior nasceu prematuro, ninguém acreditava que ele sobreviveria, pesava pouco mais de dois quilos, muito pequeno e respirava com a ajuda de aparelhos.

Durante dois meses ficou internado na Santa Casa, quando ganhou um pouco de peso e conseguiu respirar sozinho, teve alta e foi para casa.

Nem mesmo o nascimento do neto e as dificuldades pelas quais ele passou, foram suficientes para amolecer o coração do avô.

Ele jamais visitou o neto e tão pouco foi conhecer a casa de Laura e Gerson.  Dona Hilda visitava a filha escondida do marido, pois não queria contrariá-lo.

Laura não tinha leite para amamentar o filho, teve que substituir o leite materno por leite de vaca.

O leiteiro passava diariamente com sua charrete, tinha dois tambores cheios de leite, com uma caneca ele enchia as vasilhas dos fregueses e duas vezes por semana Laura comprava o leite para Junior.

Ela vigiava o filho noite e dia, tinha medo que ele passasse mal enquanto dormia, apesar dele estar sempre mamando, percebeu que não estava ganhando peso e a sua aparência estava ficando diferente.

O filho estava cada vez mais magro, o rosto muito fino, a mandíbula se destacava e os olhos fundos, sua fisionomia parecia com a de um macaco.

Desesperados o levaram a vários médicos, que sempre falavam a mesma coisa, é um mal-estar súbito causado pela desnutrição, leve este fortificante e de seis em seis horas.

Mas nada parecia resolver, a medicina naquela época era muito precária, os hospitais não tinham estruturas, o conhecimento era limitado.

Cansados de ouvir as mesmas opiniões dos médicos e sem resultado algum, foram orientados pelos mais velhos a procurar a dona Raimunda, uma sábia benzedeira que morava em Astorga.

E assim o fizeram, levaram o filho para dona Raimunda, chegando lá a mulher disse algumas palavras que não foram compreendidas por eles e com um maço de arruda na mão, passou sobre a testa de Junior que estremeceu neste momento.

- Vão para casa, disse a benzedeira.
- Mas o que ele tem, perguntou Laura.
- Ele pegou a doença do macaco, mas consegui tirar.
- Mas como, pode ser?
- Você está amamentando?
- Não, eu não tenho leite.
- Pois bem, de hoje em diante, você vai amamenta-lo somente com leite de cabra.
- Onde vou conseguir?
- Filha, se você quiser seu filho vivo, nunca lhe de leite de vaca.

E assim fez Laura, começou a dar-lhe leite de cabra e com o passar dos dias Junior foi ganhando cor, peso e sua aparência melhorou muito, aos seis meses de vida já estava bem melhor.

Seu Benedito pouco via o neto era nítido que evitava Junior, Laura sofria muito com isso pois sabia que seu pai não gostava do garoto. 

Laura acompanhou o casamento de seus irmãos, que foi completamente diferente do seu, viu seu Benedito alegre, participativo, não economizou e a festa foi muito comentada pela vizinhança.

Logo chegou seus sobrinhos, nasceram praticamente no mesmo ano, ao todo foram quatro, eram adorados pelo avô.

Laura tinha voltado a frequentar a casa do pai, quando estavam sozinhos, até que recebia um pouco da sua atenção, mas quando os outros irmãos chegavam como os sobrinhos ela era deixada de lado.

Assim foram passando os anos, Junior completou 18 anos, quando o avô adoeceu e foi hospitalizado.

Foi diagnosticado com hepatite C, necessitando urgentemente de uma transfusão de sangue o problema que o seu tipo sanguíneo AB negativo não tinha em estoque no hospital.

Todos os familiares foram fazer exames para análise do tipo sanguíneo, mas não eram compatíveis.

Só faltavam Laura, Gerson e Junior para fazerem o exame, convencidos por dona Hilda foram ao hospital, o sangue de Junior era compatível e ele doou o sangue para salvar o avô.

Quando teve alta seu Benedito engoliu o orgulho e foi visitar Laura e Gerson, porém Junior não estava em casa, havia saído com alguns amigos.

Cansado de esperar seu Benedito foi para casa e ao passar por uma viela para cortar caminho, foi surpreendido por alguns assaltantes, de longe Junior reconheceu seu avô e correu em seu auxílio, não percebeu que um dos assaltantes estava armado, se colocou à frente do avô, quando o bandido disparou, o tiro acabou atingindo o peito de Junior.

Os assaltantes fugiram, seu Benedito entrou em desespero, neste momento se arrependeu de ter desprezado o neto, que por duas vezes salvou a sua vida.

Seu Benedito gritou por ajuda e logo chegaram várias pessoas em seu auxilio, Laura e Gerson foram avisados e viram o filho caído, alguns minutos depois chegou a ambulância e o levou para a Santa Casa.

Foram oito horas na mesa de cirurgia, a bala havia se alojado a centímetros do coração, foi um milagre ele estar vivo, disseram os médicos.

A recuperação foi muito lenta, seu Benedito praticamente morava no hospital, somente quando teve a certeza que o neto estava fora de perigo, foi para casa.

Sozinho em seu quarto, viu a sua vida passar em segundos, o casamento da filha, sua intransigência em não aceitar o neto, se viu no hospital, o neto tomando o tiro em seu lugar, chorou de arrependimento.

Procurou Paulo um missionário, seu grande amigo que o aconselhou por meio de uma parábola, Benedito, uma vez Jesus falou:  “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim chamar os justos, mas pecadores ao arrependimento”.

- Vá e mostre a Laura e Gerson que você se arrependeu enquanto ainda há tempo. 

Seu Benedito abriu seu coração, pediu perdão a todos que comovidos com a atitude dele, o desculparam e pediram para esquecer o passado.

Dois dias depois seu Benedito faleceu durante o sono, sua fisionomia estava calma, parece que só teve tempo do perdão para descansar em paz.

Junior estava muito abalado com a morte do avô, mas teve a certeza que ele foi o grande responsável pelas mudanças provocadas nele.

Os mistérios da vida que fogem ao alcance do entendimento humano, talvez o avô tenha perdido a chance de se arrepender quando ele nasceu, precisando de mais tempo para perceber que tinha que mudar, razão pelo qual ele sobreviveu pela segunda vez.  

Laura nunca contou ao certo o que Junior teve quando criança, procurou esconder essa fase da vida do filho, mas ele foi juntando uma conversa com outra e descobriu que teve o mal do macaco, como era popularmente chamado o mal de Simioto, uma doença pouco conhecida causada pela intolerância ao leite de vaca.

A única forma para a cura era os benzimentos, mistérios que se perderam ao longo dos tempos.
Calbertosantos
Enviado por Calbertosantos em 06/10/2015
Alterado em 06/10/2015
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